sexta-feira, 17 de abril de 2020

Coronavírus: o que pode acontecer a Bolsonaro após ultimato da Câmara sobre resultados de exames

O longo imbróglio em torno dos resultados dos exames de coronavírus do presidente Jair Bolsonaro ganhou um novo capítulo. A Câmara dos Deputados deu 30 dias para o Planalto divulgar informações sobre os dois exames aos quais o mandatário foi submetido depois de ter tido contato com ao menos 25 pessoas infectadas.
Bolsonaro já recusou diversas solicitações para divulgar esses dados, e rebateu afirmando que as pessoas precisam confiar em sua palavra de que não foi infectado.
"Já pensou que prato feito para a imprensa se eu tivesse infectado? Não estou. É a minha palavra. A minha palavra vale mais do que um pedaço de papel", afirmou a jornalistas no dia 26 de março.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, adotou linha semelhante. "Acho que tem de confiar na palavra do presidente. Seria o pior dos mundos o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois aparecer que deu positivo".
Caso o governo Bolsonaro deixe de responder ao requerimento da Mesa Diretora da Câmara "sem justificação adequada" ou repasse informações falsas, o Artigo 50 da Constituição afirma que a autoridade incorreria em crime de responsabilidade. Isso, em última análise, poderia levar à abertura de processo de impeachment na Casa.
Mas o governo teria argumentos jurídicos plausíveis que evitem a divulgação dessas respostas? E quais seriam as implicações para o presidente se eventualmente vier a público que ele contraiu o vírus?

Bolsonaro pode se recusar a responder?

A BBC News Brasil consultou três constitucionalistas sobre o tema, que basicamente opõe dois direitos fundamentais: à privacidade e à informação.
Primeiro é importante deixar claro que o requerimento feito pelo deputado Rogério Correia (PT-MG) é endereçado ao ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Jorge Antonio de Oliveira Francisco, e não diretamente ao presidente Bolsonaro.
Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, avalia que pedido da Câmara tem mais implicações políticas do que jurídicas.
Para ele, o ministro pode facilmente argumentar que essas informações são de foro íntimo da pessoa física que é presidente da República e por isso desrespeitaria normas caso tivesse que obter e repassar esses dados privados.
Uma eventual recusa poderia levar a disputa à Justiça, que decidiria sobre a legalidade do pedido.
Para Vera Chemim, advogada constitucionalista, e Marina Faraco, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP, nesse caso o interesse público claramente se sobrepõe ao privado em uma eventual resposta do ministro alvo do requerimento.

"O presidente da República tem a obrigação de responder ao questionamento da Câmara dos Deputados, quanto aos resultados dos seus exames e se foi nesse caso, infectado pelo coronavirus. Trata-se de informação de interesse público que nesse caso específico de grave anormalidade sanitária se sobrepõe absoluta sobre o seu direito individual à privacidade", afirma Chemim.
Faraco ressalta que não há nenhum direito fundamental absoluto e que o Artigo 37 da Constituição estabelece o princípio da publicidade, entre outros, é uma das bases da administração pública.
"Então, a gente tem que interpretar sim uma limitação da esfera da intimidade do presidente pela função que ele ocupa e de dever prestar essa informação sim à sociedade. Principalmente porque o presidente se envolveu em episódios de estar em locais públicos cumprimentando pessoas, tirando fotos com pessoas. Nesse caso, não cabe o direito à privacidade."
Mas nessa etapa apenas o ministro poderia ser responsabilizado juridicamente por eventualmente deixar de responder sem justificativa plausível ou repassar dados falsos. Sobre o presidente, poderia haver ainda mais pressão política.

E se os exames têm diagnóstico positivo, em vez de negativo como ele afirmou?

Se essa hipótese se confirmar, Chemim explica que o presidente Bolsonaro poderia ser enquadrado em pelo menos quatro artigos do Código Penal, todos passíveis de pena de prisão:
  • 131: "Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio";
  • 267: "Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos";
  • 268: "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa";
  • 330: "Desobedecer a ordem legal de funcionário público".
Mas na avaliação dela, caso esse cenário se confirme, "a hipótese mais viável é a de que ele venha a responder por crime de responsabilidade, em razão da sua função pública".

Mais especificamente em dois itens dos Artigos 7º e 9º da Lei nº 1.079/1950, que prevê os crimes de responsabilidade. A exemplo, de "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".
Faraco, da PUC-SP, afirma que do ponto de vista constitucional, caso o presidente tenha mentido sobre seu diagnóstico, ele terá incorrido em crime de responsabilidade porque descumpriu leis.
"E nesse sentido poderia haver um processo de impeachment. É claro que um processo de impeachment depende de inúmeros fatores, mas teoricamente falando nesse caso, se ele souber que está contaminado e tiver participado de eventos públicos, ele incorre em crime de responsabilidade."
Para Glezer, da FGV-SP, um crime atribuído ao presidente da República no exercício da função só pode ser denunciado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, e a viabilidade política desse cenário hoje é pequena.
"Por isso que me parece muito mais uma pressão política do que de fato algo com repercussões jurídicas concretas. Para um presidente instável, uma eventual queda precisa da conjunção de pequenos pedaços, de uma percepção de sua inviabilidade, da sua desmoralização, de um acúmulo de escândalos. Eventualmente essa pode ser uma peça do que viria a ser uma derrocada de Jair Bolsonaro num futuro próximo."

Dois testes, diversas recusas

O primeiro teste para detectar se o presidente Bolsonaro estava infectado ou não foi realizado no dia 12 de março.
Ele foi submetido ao exame porque integrantes da comitiva presidencial que foi aos Estados Unidos no início daquele mês receberam o diagnóstico da doença. Ao menos 25 pessoas desse grupo foram infectadas.
No dia 13 de março, Bolsonaro divulgou em seu perfil no Twitter que o resultado havia dado negativo, sem apresentar o laudo do exame, a exemplo do que fez o colega Donald Trump.
Um segundo teste foi realizado quatro dias depois. Em 18 de março, Bolsonaro divulgou novamente Twitter que o exame havia dado negativo novamente, sem apresentar o resultado do laboratório.
A decisão de Bolsonaro de não divulgar os documentos levou a uma série de questionamentos da imprensa e de políticos.
Por ter tido contato com pessoas infectadas, Bolsonaro deveria ter cumprido quarentena de duas semanas para evitar o contágio de outras pessoas, se ele tivesse contraído o vírus.
Mas no dia 15 de março ele desconsiderou a medida e foi criticado ao deixar o Palácio do Planalto para se aproximar de apoiadores do lado de fora. Naquele dia, ele afirmou em entrevista à CNN não divulgar seus exames por ter um tratamento especial por ser chefe do Executivo.
"Se algo porventura vier a acontecer comigo, você mexe com a economia e isso não é bom para o País. No caso, o vírus para mim se eu estiver sendo portador, não tenho problema nenhum em divulgar, eu não mentiria para o povo brasileiro. Mas não estou acometido pelo vírus. Acho que há uma intromissão, ingerência desproporcional na vida do ser humano."
No dia 20 de março, o presidente foi questionado duas vezes durante uma entrevista coletiva por que, "em nome da transparência", não divulgava os resultados.
"Eu sou uma pessoa especial pela função que ocupo, obviamente", respondeu na primeira vez. E na segunda, afirmou: "Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não. Se o médico, o ministro da Saúde, me recomendar um novo exame, eu farei. Caso contrário, me comportarei como qualquer um de vocês aqui presentes".
Bolsonaro olha para o relógio, franzindo os olhosDireito de imagemREUTERS/UESLEI MARCELINO
Image captionBolsonaro defende relaxamento de medidas de isolamento para contenção do coronavírus a fim de mitigar o impacto na economia do país
Três dias depois, em 23 de março, o portal Uol solicitou esses documentos ao governo via Lei de Acesso à Informação. No dia 9 de abril, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência da República se recusou a repassar a informação.
"As informações individualizadas sobre o assunto dizem respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas."
No dia seguinte a esse pedido, Bolsonaro editou uma Medida Provisória que suspendia o atendimento via Lei de Acesso à Informação, sob o argumento de direcionar recursos para o combate à pandemia. Mas o Supremo Tribunal Federal derrubou o texto dois dias depois.
E como garantir que os resultados dos exames eventualmente divulgados sejam confiáveis? O próprio Bolsonaro lança ainda mais dúvidas sobre isso.
No dia 27 de março, ele afirmou ao apresentador José Luiz Datena, da Band, que utiliza códigos em pedidos de remédios e exames para evitar manipulações. "Os testes que eu faço são com códigos. e se eu mostrar o código. vão dizer que é mentira. por mim não tem problema." E acrescentou: "Mas tem uma lei diz que isso faz parte de sua intimidade".
O presidente também foi questionado por ter tossido no início da entrevista. "Eu tenho um problema de refluxo", justificou.
No dia 31 de março, um dos membros da comitiva presidencial que contraíram o vírus, o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) divulgou no Twitter o resultado negativo do seu exame, a fim de provar que estava livre da doença.
Até agora, o Brasil já registrou 30 mil infectados e quase 2.000 mortos por coronavírus.

Hospital omite dois nomes de infectados, segundo DF

A disputa em torno os exames realizados por Bolsonaro também chegou à Justiça.
Analisando exame de coronavírusDireito de imagemEPA
Image captionTodos os Estados do país já têm casos e óbitos confirmados de coronavírus
O governo do Distrito Federal recorreu ao Judiciário para obrigar o Hospital das Forças Armadas (HFA) - onde Bolsonaro foi testado - a divulgar a lista de pessoas que receberam diagnóstico positivo da doença.
Em decisão liminar no dia 20 de março, a juíza federal Raquel Soares Chiarellei, da 4º Vara da Justiça Federal em Brasília, determinou que o hospital divulgasse a lista de todos os pacientes com coronavírus. Ela estabeleceu uma multa diária de R$ 50 mil caso a decisão fosse descumprida.
"Já é notório que a devida identificação dos casos com sorologia positiva para covid-19 é fundamental para a definição de políticas públicas para o enfrentamento urgente e inadiável da pandemia, a fim de garantir a preservação do sistema de saúde e o atendimento da população", escreveu a juíza na decisão.
Quatro dias depois, o HFA repassou uma lista de 15 pessoas infectadas com o vírus que foram submetidas a exames na instituição. Segundo o governo do DF, outros dois nomes foram omitidos.
Questionado pela imprensa sobre essa omissão no dia 25 de março, Bolsonaro afirmou: "Você acha que eu estou escondendo alguma coisa? Tá na lei que esses laudos são segredo. Quer que eu te mande a lei, eu mando".
No dia seguinte, a juíza Raquel Soares Chiarellei extinguiu a ação por considerar que o HFA havia prestado todas as informações solicitadas.

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